Por que o traço feito à mão vale mais em tempos de IA?

Em meio à ascensão da inteligência artificial, a ilustração feita à mão ressurge como símbolo de autenticidade e conexão emocional.

O ilustrador, Prof. Laqua.
Divulgação

Uma reportagem publicada pela Harvard Gazette reacendeu o debate sobre os limites da inteligência artificial no campo das artes visuais. A matéria, que reúne especialistas em criatividade e filosofia da arte, questiona se imagens geradas por algoritmos podem ser consideradas verdadeiramente artísticas e aponta que o excesso de conteúdo visual produzido por IA tem provocado um movimento oposto: o resgate da criação manual como forma de expressão autêntica e emocional. Esse contraste tem sido particularmente sentido no universo da ilustração infantil, onde a conexão afetiva entre imagem e leitor ainda depende, em grande parte, da sensibilidade de quem desenha.

Com o avanço das plataformas generativas, ilustradores têm visto seu trabalho ser substituído por produções automáticas que, embora eficientes do ponto de vista técnico, carecem de assinatura autoral. Ao mesmo tempo, editores, autores e educadores relatam um novo interesse por ilustrações que trazem imperfeições, nuances e sentimentos, características quase impossíveis de serem replicadas por sistemas artificiais. A ilustração feita à mão, que já foi preterida por soluções digitais, agora passa a ser vista como uma linguagem de resistência estética e afetiva.

“Existe uma diferença entre criar uma imagem e comunicar uma emoção”, afirma Guilherme Bevilaqua, mais conhecido como Prof. Laqua, ilustrador com quase três décadas de atuação no mercado editorial. Para ele, a autenticidade visual não está na complexidade do software, mas na intenção do artista. “O traço feito à mão tem hesitação, tem escolha, tem presença. A criança sente isso. Ela percebe quando a imagem foi feita por alguém que estava ali de verdade.”

Laqua também observa que, à medida que o volume de conteúdo gerado por IA cresce, mais artistas iniciantes voltam sua atenção ao papel, ao grafite, ao nanquim. “Muitos chegam frustrados com a própria produção digital. Sentem que estão criando mais do mesmo. Quando retomam o gesto manual, reencontram o prazer da descoberta. E isso muda tudo”, comenta. Para ele, o desafio da atual geração não é apenas produzir bem, mas manter a identidade visual em um ambiente visualmente padronizado.

A questão se torna ainda mais relevante quando se trata de literatura infantil. Pesquisas já demonstraram que crianças respondem emocionalmente às cores, expressões e traços de personagens ilustrados, criando vínculos que influenciam sua leitura e imaginação. A ilustração, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta estética, mas parte fundamental da narrativa. “A imagem fala antes do texto. E quando ela é verdadeira, o leitor mirim sente. Não precisa entender tecnicamente, ele sente”, diz Laqua.

O tema também desperta reflexões no mercado editorial. Embora bancos de imagem e IA ofereçam alternativas mais baratas e rápidas, editores têm buscado manter o espaço de ilustradores com assinatura própria, principalmente em obras que exigem apelo emocional ou identidade artística clara. Em um cenário saturado de imagens genéricas, o traço com alma se torna diferencial competitivo.

Apesar da velocidade com que as tecnologias avançam, a ilustração autoral permanece como um gesto de presença em um mundo de ausências. Para o ilustrador, não se trata de ser contra a inovação, mas de preservar aquilo que ela não alcança. “A inteligência artificial pode gerar o que você pedir. Mas ela nunca vai viver o que você vive. E é disso que nasce a arte: daquilo que você vive, sente, transforma e coloca no papel.”

Ao contrário do que muitos previam, a era das imagens automáticas pode estar revalorizando o que é feito com tempo, com olhar e com afeto. E a ilustração infantil, talvez por sua natureza sensível e formadora, segue sendo um dos últimos bastiões da arte com alma.

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